segunda-feira, 20 de junho de 2011

Férias - III


férias

parte III


Vovô trocava de cavalo várias vezes ao dia. A sua sela era a mais bonita de todas. A cabeçada e as rédeas de couro oleado, costuradas por ele próprio.

Na varanda de trás, sentado no banco de alvenaria bem debaixo da janela do quarto das tias, eu adorava observá-lo a manejar o couro: a faca Vitry muito afiada, a ripa de madeira aparelhada que servia de régua, a bola de cera de abelha para impermeabilizar a linha, as agulhas grossas que eram enfiadas e puxadas com o auxílio de um alicate... tudo muito arrumado numa caixa de madeira, cheia de repartições. Desconfio que aquela caixa tenha sido obra de Tio Juca...

E havia o cheiro característico do couro. Olfativa, os cheiros me perseguiam.

Vovô saiu mais uma vez em viagem de negócios. Os negócios se resumiam em comprar boiada. Sempre ia para a Bahia e para Minas Gerais.

Durante a sua ausência quem tomava conta da Fazenda era Tia Lena. Brava, exigente e controladora, ela dava conta do recado.

Anotava a produção de leite e conferia a nota da Cooperleite. Fazia o armazém e também o pagamento.

Eram muitos empregados. Me recordo bem do aglomerado de gente na porta do escritório nos dias de pagamento.
Eram pilhas e mais pilhas de cadernetas, onde eram anotados os dias trabalhados, os vales e o consumo no armazém. E a pilha de dinheiro!... Notas envolvidas em barrachinhas azuis de látex e as moedas acomodadas num estojo aberto onde havia nichos nos tamanhos exatos dos níqueis.

O escritório tinha um cheiro delicioso. Era um cheiro de sigilo... de cofre forte... de coisa muito bem guardada! Na verdade, tinha cheiro de coruja empalhada!

Ficava fechado durante toda a semana e só abria aos sábados para o pagamento. O piso de ladrilho hidráulico verde e branco, muito limpo... nos cantos era bem liso, e onde era mais pisoteado, tinha textura levemente caracachenta. Apesar da limpeza, acumulava uma poeirinha gostosa que só os pés descalços sentiam.

O conjunto de sofá com duas poltronas de tecido grosso de algodão verde era provido de molas. Eu adorava sentar ali e observar Vovô e Tia Lena contarem o dinheiro, separar as notas e amontoá-las em pilhas envoltas com as tais borrachinhas azuis, que depois de algum tempo ficavam esverdeadas.

As borrachinhas são um capítulo a parte. Eram fantásticas! Dentre outras utilidades, serviam para eu ficar mastigando, escondido, fingindo que era chiclete e também para prender o meu cabelo fazendo um belo “rabo de cavalo” ou duas “mariachiquinhas”, que podiam ser altas ou baixas.

Preferia as altas! Me faziam sentir com orelhas de gado Gir. Eu gostava de andar saltitante pela estrada, sacudindo aquelas “orelhas”, me imaginando ser Hungria (uma novilha da raça Gir, linda!... que eu achava que era minha... imaginem só...).

No final do dia, quando soltava os cabelos para dormir, quase morria de dor no couro cabeludo. 

Engraçado! Aquela dor era um “alívio dolorido”. 

Imaginem que depois de quase 40 anos pude sentir novamente aquela sensação gostosa de “alívio dolorido”... foi em 2005... quando meu cabelo começou a cair em decorrência da quiomioterapia. 

Foi exatamente aquele alívio que eu senti logo após raspar a cabeça. 

Pra quem não sabe, a queda de cabelo dói!

E por incrível que pareça, dói muito menos na alma do que no couro cabeludo!



2 comentários:

  1. quero-mais-quero-mais-quero-mais-quero-mais

    mas, ok, vou aprender a esperar...

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  2. Que LINDO Astrid!!!! Suas palavras me encantaram, envolveram e me levaram para bem longe...viajei nesse post minha amiga querida, viajei tb nos tempos da fazenda Paraíso, do cheiro de estrume e leite no cural, das folhas d eucalipto sacudindo com o vento.. tudo tao bom, tao distante e tao perto... Parabéns pelo blog! Ja viciei!!!! Beijos com muita saudade...

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