quarta-feira, 29 de junho de 2011

Em noite de lua cheia...

Não tinha televisão nem telefone.

Nas noites de lua cheia e muito calor os adultos colocavam as cadeiras de vime da varanda da frente no passeio do jardim.

As crianças, nos sentávamos na escadaria e corríamos pelo gramado. Gramado de "grama branca"! LINDO! Nunca vi daquela grama em lugar nenhum...

Corríamos em volta do "planetário" e da estrela de 5 pontas... isso foi obra de um jardineiro maluquete de Vovô (como sempre) acolheu na Fazenda.

Era assim. Qualquer um que aparecia pedindo pouso, Vovô logo dava um jeito de arranjar-lhes um serviço. 

Ao lado do armazém havia um alojamento denominado "quarto dos candangos" (alusão aos bravos peões que construiram Brasília) e era lá onde os empregados que não tinham esposa e filhos se acomodavam. Havia um banheiro do lado de fora, bem perto da casinha de doces e as refeições eram feitas na cozinha da Fazenda.

Adorávamos ficar olhando os empregados comerem. Eles comiam com muita fartura. As marmitas de alumínio muito bem areadas eram entregues a cada um deles, sem tampa, com o conteúdo transbordando. Eles se sentavam na escadaria da cozinha e ali comiam e conversavam. Nos sentávamos ali para participar da conversa e observar a maneira como eles comiam para que à noite, na hora do jantar, sentados na mesa da copa, pudéssemos "remedá-los". 

Era muito divertido, aliás, era estupendo!

Coisa de criança que os adultos jamais poderiam saber. Fomos educados para tratar a todos com respeito e dignidade e "remedar" alguém não era correto... mas, adorávamos fazer isso. Aliás, "remedávamos" todo mundo!

Pensando nisso... agora é que me dei conta de quantos segredos estou revelando nestes relatos!
Mas era no jardim, sob o doce olhar da lua, que cantávamos:

"Lá vem a lua saindo
com três estrelas do lado.

A primeira vem dizendo
que "fulana" tem namorado!

Ela ama a letra "...."
e por ele tem a paixão,

O nome que ela mais escreve
é "fulano" do seu coração!"

Era uma risadaria só. Risada baixa, pois a essa hora Vovô já tinha ido para o quarto e não gostava de ser incomodado.


segunda-feira, 27 de junho de 2011

Músicas para passear na estrada...

Era assim:

Depois do jantar íamos passear na estrada.
Em noites de lua cheia, íamos até Triunfo...

Era bom demais...
E no caminho, além das estórias de mula sem cabeça, saci pererê e assombração, havia muita música!

Nos próximos dias eu estarei envolvida nos estudos do Doutorado e como o meu tempo será racionado, consegui estabelecer alguns minutos para postar as nossas "musiquinhas" de "passear na estrada"...
Aí vai a primeira de muitas;

"Tô presa, meu bem, tô presa...
Tô presa por um cordão.
Me solte, meu bem, me solte!
Me solte meu coração!"


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Férias - III


férias

parte III


Vovô trocava de cavalo várias vezes ao dia. A sua sela era a mais bonita de todas. A cabeçada e as rédeas de couro oleado, costuradas por ele próprio.

Na varanda de trás, sentado no banco de alvenaria bem debaixo da janela do quarto das tias, eu adorava observá-lo a manejar o couro: a faca Vitry muito afiada, a ripa de madeira aparelhada que servia de régua, a bola de cera de abelha para impermeabilizar a linha, as agulhas grossas que eram enfiadas e puxadas com o auxílio de um alicate... tudo muito arrumado numa caixa de madeira, cheia de repartições. Desconfio que aquela caixa tenha sido obra de Tio Juca...

E havia o cheiro característico do couro. Olfativa, os cheiros me perseguiam.

Vovô saiu mais uma vez em viagem de negócios. Os negócios se resumiam em comprar boiada. Sempre ia para a Bahia e para Minas Gerais.

Durante a sua ausência quem tomava conta da Fazenda era Tia Lena. Brava, exigente e controladora, ela dava conta do recado.

Anotava a produção de leite e conferia a nota da Cooperleite. Fazia o armazém e também o pagamento.

Eram muitos empregados. Me recordo bem do aglomerado de gente na porta do escritório nos dias de pagamento.
Eram pilhas e mais pilhas de cadernetas, onde eram anotados os dias trabalhados, os vales e o consumo no armazém. E a pilha de dinheiro!... Notas envolvidas em barrachinhas azuis de látex e as moedas acomodadas num estojo aberto onde havia nichos nos tamanhos exatos dos níqueis.

O escritório tinha um cheiro delicioso. Era um cheiro de sigilo... de cofre forte... de coisa muito bem guardada! Na verdade, tinha cheiro de coruja empalhada!

Ficava fechado durante toda a semana e só abria aos sábados para o pagamento. O piso de ladrilho hidráulico verde e branco, muito limpo... nos cantos era bem liso, e onde era mais pisoteado, tinha textura levemente caracachenta. Apesar da limpeza, acumulava uma poeirinha gostosa que só os pés descalços sentiam.

O conjunto de sofá com duas poltronas de tecido grosso de algodão verde era provido de molas. Eu adorava sentar ali e observar Vovô e Tia Lena contarem o dinheiro, separar as notas e amontoá-las em pilhas envoltas com as tais borrachinhas azuis, que depois de algum tempo ficavam esverdeadas.

As borrachinhas são um capítulo a parte. Eram fantásticas! Dentre outras utilidades, serviam para eu ficar mastigando, escondido, fingindo que era chiclete e também para prender o meu cabelo fazendo um belo “rabo de cavalo” ou duas “mariachiquinhas”, que podiam ser altas ou baixas.

Preferia as altas! Me faziam sentir com orelhas de gado Gir. Eu gostava de andar saltitante pela estrada, sacudindo aquelas “orelhas”, me imaginando ser Hungria (uma novilha da raça Gir, linda!... que eu achava que era minha... imaginem só...).

No final do dia, quando soltava os cabelos para dormir, quase morria de dor no couro cabeludo. 

Engraçado! Aquela dor era um “alívio dolorido”. 

Imaginem que depois de quase 40 anos pude sentir novamente aquela sensação gostosa de “alívio dolorido”... foi em 2005... quando meu cabelo começou a cair em decorrência da quiomioterapia. 

Foi exatamente aquele alívio que eu senti logo após raspar a cabeça. 

Pra quem não sabe, a queda de cabelo dói!

E por incrível que pareça, dói muito menos na alma do que no couro cabeludo!



terça-feira, 14 de junho de 2011

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Férias - II

férias

parte Ii


Todos os anos, Vovô aparecia com uma novidade. Mas aquele ano foi pra lá de especial.

Imaginem que ao chegar, no começinho de dezembro, nos deparamos com um casal de coelhos, que se juntaram aos pavões, faisões, galinholas, patos, marrecos irerê, gansos, perus, galinhas, cágado com casco redondo, cágado com casco achatado, além, é claro, do gado, dos cavalos, dos cachorros, dos gatos, isso sem falar no viveiro, onde a araponga trinava feliz e o tiê sangue era o mais lindo de todos.

Acho que uns três dias depois da nossa chegada, a coelha teve filhotes (que agora não me lembro quantos), que por sua vez, ao longo das férias, também foram se reproduzindo. O cercado virou um mar de coelhos!

Como se não bastasse a “coelhada”, um belo dia, um dos empregados chegou lá das bandas da Balança com uma cabritinha linda. Ela estava prestes a parir.

Foi acomodada no pasto da frente, que não era bem um pasto, mas sim um grande cercado de tela, exatamente em frente a casa, onde ficavam as plantações de abacaxi, melancia e aipim. Naquela ocasião só havia terra tombada.

Havia junto à tela do cercado, um enorme coqueiro, meio torto, bem de frente. Havia um pé de goiaba, ou melhor, dois! Um de goiaba vermelha e outro de goiaba branca, que ficavam ao lado do galinheiro rente ao pomar. Havia também um lindo pé de flamboyant, lá no final do cercado, do lado esquerdo, na divisa com o pasto de Assombro.

Assombro era um dos cavalos de Vovô. Um garanhão tordilho – lindo – que só era montado por ele, com crina e cauda muito bem cuidados. Aliás, os cavalos da Fazenda tomavam banho todos os dias. Adorávamos ficar olhando Mazinho esfregar os animais com sabão de côco. Corrente e farta, a água era pura e límpida. Morro abaixo, diretamente do córrego, encanada numa tubulação de ferro de boas polegadas que terminava na piscina.

Sim! Na piscina. A piscina era imensa. Mamãe e as tias mais velhas (Tia Lena, Tia Neide e Tia Vera) contavam que ali era uma espécie de vale, onde havia um grande pomar ou coisa parecida e que também havia uma casa de marimbondos e sobre a qual um deles se esborrachou. Na realidade, contavam que tinha sido Tio Carlinhos, que era, de todos, o “mais espírito de porco”.

Muitos anos antes de eu nascer, quando os tios mais velhos ainda eram pequenos, Vovô resolveu construir uma barragem, cimentar o morro, e ali, naquele “vale”,  nasceu a piscina mais linda do mundo! Tinha formato irregular. Uma área com areia (sem trocadilho) e uma piscina rasa para quem ainda não sabia nadar. Uma mureta demarcava os territórios – livre ou perigoso.

O cimento era grosso, muito grosso, e as raladas ainda são nítidas nas minhas pernas. Como uma espécie de tatuagem, as cicatrizes adquiridas, depois de tratadas com iodo passavam a ocupar a galeria das conquistas. Conforme o grau do “acidente”, maior e mais profunda era a ferida. E estas eram consideradas como verdadeiros troféus.

Lembro-me que num ano eu levei a minha Monareta. Uma Monark 70, vermelha. Caí tanto e me ralei tanto que Vovô proibiu o uso da bicicleta. E pelo restante do período de férias, trancou-a no atelier localizado ao lado do seu escritório. Ainda bem! Não sei o que poderia acontecer... nós éramos umas pestes!

À tardinha tomávamos banho e ficávamos na varanda, de conversa fiada, aguardando a hora do jantar. Comíamos na mesa da copa (a mesa da sala de jantar era somente para os adultos).

Após o jantar, sentávamos outra vez na varanda e ficávamos nos exibindo: cada um queria ter mais cicatrizes que o outro. E olha que tinha de tudo: prego no pé, topadas, raladas na piscina, mordida de traíra ou de jundiaí, rasgão no arame farpado, corte de faca (estes oriundos de descascar laranja ou cana de açúcar).

No caso da cana de açúcar, descobrimos  uma serra muito potente, no formato de meia lua, que ficava pendurada no barracão da máquina de ração e que era muito melhor para descascar do que a faca. Usávamos a serra escondido. Os adultos não podiam saber.

Falando nos adultos...

 – Oito horas! Dizia Tia Lena.

A conversa cessava e era hora de dormir.




quinta-feira, 9 de junho de 2011

Férias - I

férias

parte I


O pé encardido. A chaleira fumegante despejando água fervente na banheira amarela, de textura bem lisinha... daquelas bem escorregadias. As tias cortando limão e mandando que eu os esfregasse nos pés na vã tentativa de “clareá-los”.

Era o penúltimo dia de férias. Isso significava que no dia seguinte, bem de madrugada, muito antes do raiar do sol, estaríamos na estrada. Mais uma vez ficaria para trás mais um longo período de férias. Eram praticamente noventa dias de puro deleite.

Todos os anos era o mesmo ritual. Acordar muito cedo. “Ter” que tomar café porque a “viagem era longa”. Imaginem só: de Triunfo a Campos – cerca de cem quilômetros de distância.

Tomar café? Café, que nada! Era leite! Um leite quente, horroroso, de vaca de verdade (quando não era de búfala!), bem gordo, com um pingo de café e um pouco de açúcar.

Ainda posso sentir aquele “cheiro de focinho de bezerro” que, ao enfiar o nariz na xícara, me dava náuseas.

As tias falavam que eu sentia enjôo porque eu iria viajar.

Elas afirmavam, convictas:
– “Anda menina, bebe isso logo. Andar de carro é que dá enjôo!”

E, invariavelmente, eu passava “mal” na viagem. Era um suplício.

Primeiro, ter que deixar a Fazenda. Segundo, o enjôo.

Aquele leite quente chacoalhando no meu estômago... A Rural Willians chacoalhando nos “buléus” da estradinha de Paciência. Era tiro e queda. A parada era obrigatória antes mesmo de chegar na antiga Rodovia Amaral Peixoto. Ou para evitar de sujar o carro, ou para exatamente limpar o carro.

Depois daquilo, no fundo eu me sentia aliviada, apesar das brigas e reclamações dos meus companheiros de viagem que odiavam aquela cena toda. Após me livrar daquele “leite” eu gozava de uma sensação de bem estar indescritível. Podia respirar tranquila e finalmente, curtir a paisagem.

Me lembro bem de umas palmeiras... ou seriam coqueiros?... que avistávamos a alguns quilômetros da estrada de asfalto, bem na entrada de Quissamã, na Fazenda dos Patos (acho que era esse o nome). Nessa hora, o sol começava a apontar no horizonte. Era assim todos os anos. Tenho essa imagem perfeita na minha memória. Acho que Vovô calculava o tempo exato em que deveríamos passar por ali.

O sol, meio vermelho, encabulado. Depois, meio rosado, como se estive nos espreitando. E de repente, amarelo ouro, reluzente. O céu, de branco tomava um azul de brigadeiro. E a vegetação, até então prateada do orvalho, ia se tornando verdinha e muito cheirosa. Andávamos com os vidros abertos, com o vento batendo no rosto. Os mais velhos diziam que era bom para “aliviar o enjôo”.

Que coisa! Os malditos “enjôos”. Anos de sofrimento. Somente muito tempo depois – eu já era adulta – é que fui descobrir que leite de vaca in natura me fazia mal. O problema não era a estrada, muito menos andar de carro. Era o leite! De madrugada. Sem fome. Beber aquele leite... ainda hoje me dá enjôo, só de lembrar.

E assim, a partir daquele ponto, a estradinha de “buléus” ficara para trás. Agora não tinha mais jeito. Não havia como retornar. Era preciso prosseguir para mais um ano escolar.

Na medida em que o carro ia avançando, as brincadeiras e as risadas frouxas daquelas férias iam se distanciando, no entanto, o balanço era feito durante aquele percurso. 

Agora, já com barriga em ordem, eu poderia finalmente sonhar de olhos abertos enquanto serpenteávamos pela antiga Amaral Peixoto.


domingo, 5 de junho de 2011

1969



1969

Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo.

Agora, eu estava no colégio e todos os dias minha mãe recomendava para eu não falar com estranhos e se alguém perguntasse em quem os meus pais votavam era para eu sempre dizer: “eu sou criança e não sei nada dessas coisas”.

E não sabia mesmo! Eu só sabia que tínhamos um presidente e que depois, passaram a ser três “presidentes” e que logo em seguida voltamos a ter apenas um. Tendo este, um sobrenome tão esquisito que eu não conseguia gravar de jeito nenhum.

Desse jeito eu ficava cada vez mais sem entender muito bem o que estava acontecendo, e ao perguntar, sempre me respondiam que era “coisa de adulto”, assunto de gente grande e que eu ainda era muito pequena para entender aquelas “coisas”.

As crianças não participavam das decisões. Um dia, o meu avô paterno apareceu com uma esposa. Uma mulher muito arrumada com cabelos ruivos e batom vermelho. Ouvi dizer que era viúva e que tinha filhos que viviam no Paraná. Ninguém me explicava nada. E eu também não indagava, pois não era permitido.

No entanto, eu percebia nos meus pais certo constrangimento com a presença daquela mulher, mas eu adorava ficar ali, no quarto de tapete verde, olhando ela desarrumar a mala, se maquiar, colocar rolinhos no cabelo... Ela tinha tantos lenços italianos lindos, coloridos e perfumados. Eu ficava inebriada com tanta novidade. Eram os apetrechos de quem vivia na cidade grande. No Rio de Janeiro.

Imaginem que somente muitos anos depois, passadas mais de duas décadas do falecimento do meu avô é que minha mãe contou que “aquela” mulher era, na realidade, a esposa de um político importante que permaneceu no exílio (era um Ministro de João Goulart, cujo nome eu prefiro preservar – consta que voltou do Uruguay e reingressou na vida pública em 1979). Engraçado! Aquela mulher passou pelas nossas vidas sem deixar rastro. A última vez que a vi foi antes do meu avô falecer. Nunca mais ouvi falar nela.

Eu não entendia nada e ninguém me explicava nada. E eu também não indagava, pois "não era permitido".

Aliás, eu não entendia muito bem nem qual era a diferença entre país, estado e município. Distrito Federal me soava como se fosse um pedaço de terra suspenso no ar, que não pertencia a lugar nenhum. Era como se fosse uma Atlântida – a  civilização perdida, tal qual aquela que eu via nas minhas revistas em quadrinhos. Uma espécie de bolha onde só é permitida a entrada de alguns, e cuja permanência é vinculada ao cumprimento de determinadas regras, digamos, especiais. Depois de tantos anos, desconfio que minha leitura ainda é mais ou menos assim.

Mas, o que me importava, não era nada disso! Estávamos em 1969 e era meu primeiro ano no colégio. No Colégio Auxiliadora. Colégio das minhas tias.

O caderno caprichosamente encapado. Era um papel tipo “papel de presente” com fundo rosa claro e muitos gatinhos, uns cinzas, outros amarelos e outros pretos. Os gatos brincavam com muitos novelos de lã. Eram muitos gatos. Em grupos, eles brincavam uns com os outros. Eram lindos!

Tia Sonia manejava a tesoura e o durex como ninguém. Mesmo com aquelas unhas enormes, muito bem cuidadas (acho que o nome da manicure era Rosane). Naquela época se usava esmalte branco leitoso. Parecia esparadrapo. Mas era chique!

Ela cortava firme o papel, mas era mesmo certeira no plástico transparente: a tesoura deslizava no plástico e deixava no ar um zunido encantador.

Eu, de pé, ao lado da mesa da sala de jantar da casa de Vovó Senhora (a casa da Alberto Torres), com o nariz grudado na borda da mesa e os olhos vidrados nas mãos da tia “encapadora de livros”. E o cheiro do material escolar... do papel e do lápis de cor... que delícia!

Eu estava tão entretida naquele momento que nem me dava conta de que a campainha sob a mesa estava livre para eu pisar e, como resposta, a empregada vir correndo da cozinha, estabanada, atender ao chamado da patroa. Eu adorava fazer isso... como me divertia!

E assim, peguei o meu material escolar – eram apenas um caderno e um livro grande – e toda arrumada, de “pedrita” no cabelo, uniforme, botas ortopédicas, meias brancas e merendeira, muito segura de mim, percorri o longo e estreito corredor e saí pela Rua Gil de Góis, confiante de que não mais veria o mundo através das explicações “pela metade” que os adultos me davam, pois, de agora em diante eu saberia ler e escrever.



Vista aérea - Fazenda Bom Destino

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A BORBOLETA DE TIA NEIDE

A bORBOLETA de Tia Neide

A bermuda de veludo “cotelê” cor de burro quando foge era horrorosa até que Tia Neide resolveu aplicar uma borboleta de miçangas. A borboleta mais linda que eu já vi na minha vida.

A bermuda, na realidade, não era uma bermuda e sim uma calça Lee que virou uma bermuda.

Naqueles tempos, a roupa era passada da irmã mais velha para a irmã mais nova, em carreirinha. E olha que eram treze! Nove mulheres e quatro homens. Eu me considerava a 14ª. É verdade! Eu achava que antes da minha mãe casar eu era a irmã mais nova, que só me tornei sua filha depois que ela se casou. Acho que nunca falei isso pra ninguém...

Mas, vamos às roupas: assim como as outras, eu também tinha meu lugar na fila. Vivia de olho no farto guarda-roupa das tias.

E como elas tinham roupas!

Afinal, eram oito moças e meu avô fazia questão que elas andassem muito bem vestidas. Elas não repetiam roupa de festa. Era um sonho!

Voltemos à bermuda.

A dona da bermuda era a Tia mais prendada. Costurar, bordar, casear, pintar, decalcar, colar sem deixar manchas no trabalho, enfim... tudo que sei de corte, costura e afins aprendi com ela! Exceto cerzir. Nesse quesito, Tia Lena era campeã! Fazia gosto vê-la usando a máquina Singer de Vóvo Odete, numa velocidade louca, pra frente e pra trás, e em instantes, como por encanto, a costura se transformava num remendo invisível deixando as calças Lee desbotadas aptas para mais uma cavalgada. Os tios viviam rasgando as calças e Tia Lena, as remendando. Perfeitamente. Velozmente. Invisivelmente.

Era tempo dos hippies e as roupas deviam ser reaproveitadas. Além de politicamente correto, era moda! E as filhas de Ninito estavam sempre na vanguarda de tudo.

Naquela época não se falava em customização, mas era isso que fazíamos.

Havia muitas revistas de moda e idéia é o que não faltava naquela casa. O “Clube de Costura” (que era o nome que eu dava àquele movimento, sem ninguém saber, é claro!) funcionava sempre depois do almoço.

Assim que Vovô saia à cavalo, todas nos reuníamos para colocar em prática os nossos dotes: depois de muito folhear os “manequins”, escolhíamos os motivos e os riscávamos nas velhas calças Lee, que se transformavam em verdadeiras obras de arte.

Foram muitos bordados e muitas aplicações, mas como aquela borboleta de miçangas nunca existiu outra mais linda!

É muito provável que aquela bermuda não exista mais, no entanto, aquela borboleta continua viva na minha lembrança e está sempre voando ao meu redor: fagueira, linda e brilhante.

Aliás, aquela borboleta é muito mais do que mera lembrança. Constato eterno o seu verdadeiro significado. A sua profunda representatividade. O poder de transformar o feio e velho em coisa nova e bonita. A possibilidade de SE transformar a cada dia, de renovar o velho e redesenhar a vida, dia após dia, enquanto ela perdurar.