domingo, 5 de junho de 2011

1969



1969

Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo.

Agora, eu estava no colégio e todos os dias minha mãe recomendava para eu não falar com estranhos e se alguém perguntasse em quem os meus pais votavam era para eu sempre dizer: “eu sou criança e não sei nada dessas coisas”.

E não sabia mesmo! Eu só sabia que tínhamos um presidente e que depois, passaram a ser três “presidentes” e que logo em seguida voltamos a ter apenas um. Tendo este, um sobrenome tão esquisito que eu não conseguia gravar de jeito nenhum.

Desse jeito eu ficava cada vez mais sem entender muito bem o que estava acontecendo, e ao perguntar, sempre me respondiam que era “coisa de adulto”, assunto de gente grande e que eu ainda era muito pequena para entender aquelas “coisas”.

As crianças não participavam das decisões. Um dia, o meu avô paterno apareceu com uma esposa. Uma mulher muito arrumada com cabelos ruivos e batom vermelho. Ouvi dizer que era viúva e que tinha filhos que viviam no Paraná. Ninguém me explicava nada. E eu também não indagava, pois não era permitido.

No entanto, eu percebia nos meus pais certo constrangimento com a presença daquela mulher, mas eu adorava ficar ali, no quarto de tapete verde, olhando ela desarrumar a mala, se maquiar, colocar rolinhos no cabelo... Ela tinha tantos lenços italianos lindos, coloridos e perfumados. Eu ficava inebriada com tanta novidade. Eram os apetrechos de quem vivia na cidade grande. No Rio de Janeiro.

Imaginem que somente muitos anos depois, passadas mais de duas décadas do falecimento do meu avô é que minha mãe contou que “aquela” mulher era, na realidade, a esposa de um político importante que permaneceu no exílio (era um Ministro de João Goulart, cujo nome eu prefiro preservar – consta que voltou do Uruguay e reingressou na vida pública em 1979). Engraçado! Aquela mulher passou pelas nossas vidas sem deixar rastro. A última vez que a vi foi antes do meu avô falecer. Nunca mais ouvi falar nela.

Eu não entendia nada e ninguém me explicava nada. E eu também não indagava, pois "não era permitido".

Aliás, eu não entendia muito bem nem qual era a diferença entre país, estado e município. Distrito Federal me soava como se fosse um pedaço de terra suspenso no ar, que não pertencia a lugar nenhum. Era como se fosse uma Atlântida – a  civilização perdida, tal qual aquela que eu via nas minhas revistas em quadrinhos. Uma espécie de bolha onde só é permitida a entrada de alguns, e cuja permanência é vinculada ao cumprimento de determinadas regras, digamos, especiais. Depois de tantos anos, desconfio que minha leitura ainda é mais ou menos assim.

Mas, o que me importava, não era nada disso! Estávamos em 1969 e era meu primeiro ano no colégio. No Colégio Auxiliadora. Colégio das minhas tias.

O caderno caprichosamente encapado. Era um papel tipo “papel de presente” com fundo rosa claro e muitos gatinhos, uns cinzas, outros amarelos e outros pretos. Os gatos brincavam com muitos novelos de lã. Eram muitos gatos. Em grupos, eles brincavam uns com os outros. Eram lindos!

Tia Sonia manejava a tesoura e o durex como ninguém. Mesmo com aquelas unhas enormes, muito bem cuidadas (acho que o nome da manicure era Rosane). Naquela época se usava esmalte branco leitoso. Parecia esparadrapo. Mas era chique!

Ela cortava firme o papel, mas era mesmo certeira no plástico transparente: a tesoura deslizava no plástico e deixava no ar um zunido encantador.

Eu, de pé, ao lado da mesa da sala de jantar da casa de Vovó Senhora (a casa da Alberto Torres), com o nariz grudado na borda da mesa e os olhos vidrados nas mãos da tia “encapadora de livros”. E o cheiro do material escolar... do papel e do lápis de cor... que delícia!

Eu estava tão entretida naquele momento que nem me dava conta de que a campainha sob a mesa estava livre para eu pisar e, como resposta, a empregada vir correndo da cozinha, estabanada, atender ao chamado da patroa. Eu adorava fazer isso... como me divertia!

E assim, peguei o meu material escolar – eram apenas um caderno e um livro grande – e toda arrumada, de “pedrita” no cabelo, uniforme, botas ortopédicas, meias brancas e merendeira, muito segura de mim, percorri o longo e estreito corredor e saí pela Rua Gil de Góis, confiante de que não mais veria o mundo através das explicações “pela metade” que os adultos me davam, pois, de agora em diante eu saberia ler e escrever.



Um comentário:

  1. Astris vc não imagina com me faz feliz com seusv relatos. Bjosssssssss parabéns

    ResponderExcluir